FRONTISPÍCIO DAS ARTES

A arte começa onde a imitação acaba. Oscar Wilde

sábado, 25 de dezembro de 2010

Dalila Teles Veras entrevista RICARDO AMADASI


Numa tarde cálida de quase primavera, a última dos novecentos, Amadasi serve café e seus gestos largos orquestram o silêncio no ateliê do Riacho Grande, a Billings ao fundo. Meus olhos passeiam pelos contornos fortes de suas esculturas - mudas mas poderosas expressões - e podem ler ali uma possível resposta àqueles que preconizam a morte da arte. Sua fala mansa é a antítese de sua mensagem. A conversa risca a tarde como um buril a abrir veias e nervos na pedra. Seguem alguns momentos dessa conversa, registros do pensamento de um talentoso artista que não perdeu a capacidade de atear o fogo da indignação nesta virada de era e derrocada de valores.

Dalila: A sua arte traduz sua própria concepção ideológica de mundo?
Amadasi: Sim, em primeiro lugar, enquanto cidadão, depois, enquanto conceito de cidadania, é preciso ter uma postura e uma postura significa um conceito, uma idéia, um sonho a ser realizado. Sem dúvida, a arte como instrumento do homem pensante é portadora de uma ideologia. Eu me pergunto: as artes plásticas como exercício visual ou como reflexão? Arte para ver ou arte portadora de um conceito de vida? Arte para ver ou arte para ver e pensar? Este foi sempre o divisor de águas entre posturas, atitudes e pensamentos diferentes, quando não antagônicos.

Dalila: Então você concorda que a arte ainda tem uma função social?
Amadasi: Sim, junto a outras ações do homem, a arte tem a função de elevar o nível de consciências e sensibilizar as pessoas. Não estaria modelando, criando se não acreditasse no potencial de interferência de meu trabalho, se não, aquilo que restaria, seria um simples exercício do ofício, próprio para um jogo de um ego vazio e inútil. Se arte é um produto do ser, da essência, do existir, não há espaço para um brincar de faz de conta, alimentado por mercados ou pessoas interessadas em fortalecer seus próprios bolsos, ao preço neutralizador, pasteurizador ou vulgarizador do drama da existência humana.

Dalila: Está claro que você não copia a realidade e suas mazelas sociais, mas a recria através da arte. Além dessa vida que pulsa nas ruas, traduzida nas suas esculturas, você tem também uma preocupação estética?
Amadasi :Sem dúvida. Estética é transformar o sentido do que seja a beleza, dando um conteúdo para ela, pois a beleza não é apenas um fenômeno efêmero ou um mero jogo formal de cores, formas e composição, mas, simplesmente, ela faz sentido em função de um projeto que se chama ser humano e sua transformação. Trata-se da comunhão, da simbiose, do que é escultura, do que é prática e do que é ser humano. Esse casamento chama-se arte. As formas, as maneiras do sentir e do expressar são infinitas e graças a Deus que somos tão múltiplos, mas os conteúdos continuam sendo constantes e permanentes.

Dalila: Com tudo isso, você acredita que a arte é um elemento que possa contribuir para mudar o curso da história?
Amadasi: Acredito, porque, certamente, trata-se de um elemento perturbador. A arte deve ser verdadeiramente questionadora. A arte nunca foi, para mim, embalo para corpos cansados ou crises matrimoniais, sonho em ser um despertador dos sentidos, uma arte pensamento, uma rebeldia, uma posição, uma não acomodação e uma idéia. Qualquer gesto de resistência e ousadia. A escolha entre ser um bobo da corte, entretenimento ou lazer das elites ou questioná-las e participar. Existe uma enorme diferença em aparentar o que somos ou expressar realmente o que somos. Resistir e acreditar que tudo pode mudar. Sonhar é preciso.

Dalila: O que você acha do conceitualismo predominante na arte atual?
Amadasi: Do conceitualismo ou da falta de conceitos? Eu penso que é necessário vivenciar e repensar os conteúdos vitais e constantes dos seres humanos. No caso das artes plásticas, a partir de Leonardo da Vinci, há uma história humanista, segue uma perspectiva humanista através da cultura. Não pensar, não sentir, ou não entender o conceito disso é não conceituar a arte, é perder o conteúdo de vida. Uma arte sem conteúdo nem fundamento não vale a pena ser vivida. Não tem função social ou sensível, não é transformadora. É esse o vazio que enfrentam os artistas neste momento e que reflete o vazio que vai na cabeça das pessoas. Eu me pergunto como alguém pode fazer algo no qual não acredita? Se a arte não serve, façamos algo mais útil, outras atividades. Denise Stoklos diz: como as pessoas podem estar satisfeitas com suas pequenas conquistas, com suas propriedades, quando tudo está cada dia mais vazio?

Dalila :Dentro dessa sua visão e dessa sua postura, como é que você dialoga com a chamadas vanguardas artísticas?
Amadasi: Muito bem, com bastante humor e um pouco de ironia. Eles me contam que, nesta temporada, a saia vem mais longa e a cor do momento puxa para o floreado. Para mim, isso não vai além de um jogo transitório, fácil, modismos de efêmero consumo. Não vale a pena ser levado a sério e discutido. A arte, ou tudo o que mereceria ser chamado assim, nunca copiou de forma servil, aleatória e mecânica. Para quê? Para sentir que somos parecidos, quando não idênticos a outras realidades tão diferentes da nossa? Para que se travestir, se iludir vestindo roupagens do que nunca chegamos a ser, ou será que não queremos aceitar o que somos?
Pelo contrário, toda arte e cultura que teve um fundamento, surgiu dos mais profundos sentimentos coletivos, históricos e condições reais de um povo. Tem raízes dentro de si, tem um olho aberto para fora e outro olho sensível para sua própria realidade, sua singularidade.
É a capacidade que tem o homem para olhar dentro de si profundamente - evitando seu próprio umbigo - e descobrir que somos diferentes porque as condições são absolutamente diferentes, somos parte real de um continente de desafios abertos e ainda problemáticos.
Quanto às chamadas vanguardas, elas vão cansar de trocar de roupa - disfarces, cores, máscaras - apenas aparências, para depois perceberem que estavam despidas.

Dalila: Você acredita que haja, no Brasil, discriminação estética?
Amadasi: Quando Picasso criou “Guernica” em Paris, acusando as atrocidades do fascismo espanhol, e o desrespeito pelo direitos humanos, expressando a injustiça social e a intolerância foi tachado de panfletário. Quando, em 1944, Picasso disse: agora compreendi que devo combater não somente através de minha arte mas através de todo meu ser, foi acusado de militante. O nosso final de século está aí e continua sendo, mais do que nunca, uma catarse, uma confrontação aberta entre um humanismo profundo, histórico, aquele do Leonardo da Vinci, das imagens críticas de Bruegel, dos mistérios de Hieronymus Bosch, lutando contra todo o tipo de inquisições, torturas ou inventos de massacrar gentes.

Dalila: Como você avaliaria a passagem de sua fase anterior, considerada pela crítica como surrealista - a do sonho e da imaginação - para a atual fase, uma arte, digamos, humanista, que olha o homem e as suas mazelas sociais?
Amadasi: Avaliaria de um outro ponto de vista. Eu trabalhei muito em cima do sonho, eu tenho uma vida de sonhar muito, sempre trabalhei em função dos meus sonhos, e ainda os registro pois é um material inesgotável e riquíssimo. Quando se trabalha com uma realidade, ela é social, mas, muito em especial no Brasil, ela é extremamente surrealista, supera a fantasia. Não houve, na verdade, essa transição, eu continuo vendo a realidade e registrando o sonho.

Dalila Fale um pouco de sua proposta hoje, a de falar dos deserdados, os excluídos...
Amadasi Não posso deixar de registrar em minha obra o que vejo a cada dia e o que vejo é um mundo onde reina uma desigualdade atroz, um mundo onde uma infinidade de seres não têm a mínima possibilidade de sair da alienação, submetidos a uma crueldade inaudita, que gera uma cadeia de fracassos. Minha proposta é trabalhar com os marginalizados como um retrato vivo, criando uma galeria dos deserdados e oprimidos, expressando o universo frívolo, estúpido, consumista e insensível desta sociedade.
Num mundo do qual somos parte, de enormes massas humanas à beira do desespero pela falta de possibilidades, de caminhos, que sentido teria fechar os olhos e fingir que não vemos, que não sentimos? O que seria da sensibilidade no dia em que tudo passasse a ser normal, como a indiferença, a omissão, a postergação de respostas concretas? Aí perguntamos e nos perguntamos: cadê a liberdade, o direito de reagir dentro de uma cultura que transforma o grito e a dor em banalidade?
Denunciar a impiedade de um mundo contemporâneo através de uma arte que não, copia a realidade, mas a questiona e até a retoma, partindo da força da indignação e do espirito da dor, é a idéia principal do meu trabalho.

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